segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Sábados de manhã

Eu e minha irmã mais nova já sabíamos: sábados e, muitas vezes, domingos de manhã eram reservados para as visitas aos pacientes do meu pai internados ou acamados. 

Separado e com duas filhas pequenas, ele não tinha alternativa a não ser nos levar a essas visitas.

Enquanto ele examinava os pacientes, ficávamos brincando no estacionamento ou aos cuidados de alguma enfermeira gentil que nos levava passear pela ala pediátrica. Não raro, íamos à casa ou ao quarto dos pacientes.

Foi assim que tomei contato com a aids, nos anos 1980.
Naqueles dias obscuros, era comum ouvir que o vírus podia ser transmitido por meio de contato social. Ciente do absurdo dessa premissa, meu pai nunca nos permitiu ter medo ou evitar os pacientes. Aliás, isso não era sequer cogitado.

Os doentes e seus familiares nos recebiam em casa ou nos quartos de hospital com tanta simpatia que passamos a pedir para acompanhá-lo nas visitas.

Sempre havia um presente, um pedaço de bolo, um livro, um agrado à nossa espera. Pacientes fisicamente debilitados e abatidos nos recebiam com um sorriso terno e amoroso.

Perdi a conta de quantas vezes recebi beijos, abraços e elogios generosos de gente que eu nem sequer conhecia.

Eu não entendia à época por que essas pessoas eram tão mais receptivas do que as que sofriam de outras doenças.

Aos poucos fui compreendendo que aqueles pacientes também eram vítimas de outra doença: o preconceito.

Ao revelar que sofriam de aids, tinham de engolir os cochichos e olhares de reprovação, isso quando não eram demitidos do trabalho, expulsos de ambientes e abandonados por amigos e familiares. Como, então, não se surpreender com um médico que, além de visitá-los em casa, levava duas filhas pequenas que se sentavam na cama deles para ver televisão?

Essa experiência me deixou marcas profundas. Aprendi que o preconceito é a expressão do lado mais detestável do ser humano. E é abominável.


Também entendi que, felizmente, ele não é intrínseco. A gente aprende a ser preconceituoso, assim como a não ser. 

E isso me faz ainda ter alguma esperança na humanidade.