domingo, 11 de janeiro de 2015

A pataquada do vídeo italiano contra a violência doméstica


Na primeira semana deste ano, o vídeo "Slap Her!" ("Bata nela", em tradução livre), feito pelo jornal online italiano fanpage.it, foi visto e compartilhado à exaustão no mundo todo (o vídeo, com áudio em italiano e legendas em inglês, está disponível no YouTube). Nele, meninos de 7 a 11 anos são apresentados a uma menina, Martina.

O narrador, um homem adulto, pergunta o que eles mais gostam na garota. Um diz que é o cabelo, outro, os olhos. Depois, ele solicita que a acariciem, e é prontamente atendido. Por fim, o mesmo homem pede que os meninos batam nela. Os garotos fazem cara de surpresa e, pela primeira vez, não o obedecem e se justificam: “Não se bate em mulher nem com uma flor”, “Sou homem e homem não bate em mulher”.

O vídeo caiu nas graças dos incautos. Afinal, quem não se comove com crianças engraçadinhas dizendo que não se deve bater em mulher, coisa que muito marmanjo ignora?

No entanto, a violência doméstica cresce em vários lugares do mundo, incluindo a Itália, país notadamente machista onde, segundo a ONU, morrem cerca de 130 mulheres todos os anos vítimas de violência.

A intenção do vídeo seria mostrar que o machismo é uma construção cultural, não algo intrínseco ao ser humano e que, portanto, pode ser mudado. Porém, talvez por ingenuidade ou desconhecimento da causa feminista, o vídeo apresenta uma série de problemas, alguns já discutidos em artigos de vários países. Aqui, aponto os que mais me chamaram a atenção:

1) Não ouvimos a voz da menina nem uma vez sequer. Parada em frente aos meninos, ela é apresentada pelo narrador e passa a ilustrar o vídeo como um objeto de cena, em meio a garotos que dizem seu nome, revelam a idade e seus sonhos.

2) O narrador pergunta o que acham da menina, pedem que lhe acariciem e lhe batam, mas nem uma vez ousa indagar o que ela, Martina, realmente quer. Ela consente que a acariciem? Gosta disso? Na verdade, ela parece bastante consternada e sem graça ao ser tocada.

3) Sabemos que a violência contra a mulher não ocorre em frente às câmeras, portanto é de se esperar que os meninos fiquem constrangidos e se recusem a bater em Martina. Fariam a mesma coisa se ela fosse um menino como eles, posso apostar. Ou alguém bate no outro porque lhe mandam, ainda mais sabendo que está sendo filmado? Portanto, o vídeo não prova absolutamente nada.

4) O tempo todo, os protagonistas do vídeo são os meninos. Eles decidem se e como devem tocar nela, como se a carícia sem o consentimento declarado de Martina por si só já não fosse uma violência que nós, mulheres, conhecemos bem.

5) O que podemos notar no vídeo é que os meninos fizeram bem a lição de casa e decoraram todos os clichês, como “homem não bate em mulher, ainda mais bonita” ou “em mulher não se bate nem com uma flor”. Sabemos que os clichês não evitam a violência, caso contrário não veríamos os números de violência doméstica crescerem a cada ano.

6) Mas o melhor fica para o gran finale: o narrador pede que um dos meninos beije Martina, e o garoto pergunta se deve fazê-lo na boca ou no rosto. Vejam bem, ele questiona o narrador, não a menina.

7) Por fim, ao contrário do que possa ter desejado o autor do vídeo, ele passa a mensagem errada e nociva de que mulher, desde criança, se for bonita, agradar e servir aos propósitos dos homens merece algum respeito. Mesmo que não abra a boca.