sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Quando uma vida vale menos


O movimento contínuo de carros e pessoas anuncia a proximidade do fim de semana. A noite quente, atípica para esta época do ano, convida para uma cerveja nas centenas de mesas dos bares de dois bairros paulistanos famosos pela boemia, Jardins e Vila Madalena. O som da risada e da voz de jovens, a maioria de classe média e classe média alta, se faz ouvir há dezenas de metros.


No meio da confusão festiva, ninguém estranha quando um Peugeot prateado para em frente de um desses bares por volta das oito da noite. Dois homens encapuzados descem armados e atiram nas pessoas que até então não haviam notado sua presença. Alguns gritam e tentam se esconder embaixo das mesas, outros não têm tempo sequer de reagir e caem mortos. O barulho dos tiros e o sangue que escorre nas calçadas transformam aquele ambiente antes alegre em um cenário de guerra.


A cena se repete durante cerca de duas horas em oito lugares diferentes, totalizando dezoito mortos e vários feridos. Uma das vítimas, Pedro, de 33 anos, era casado e tinha três filhas pequenas, agora órfãs. O corpo de Paulo, 26 anos e morto com seis tiros, aguarda durante doze horas na calçada pelos agentes do IML, exposto e abandonado como um cachorro, nas palavras do irmão.


As testemunhas nunca se esquecerão do que viveram. No dia seguinte, os meios de comunicação noticiam a tragédia initerruptamente. O governo do estado promete prender os assassinos, provavelmente policiais ligados a grupos de extermínio. A população, chocada, sai às ruas clamando por justiça, em apoio a dor dos familiares das vítimas. O país demora um tempo para retomar a rotina.


A cena acima é parcialmente fictícia. Com exceção do local, da classe social das vítimas e do desfecho, a história é verídica. A chacina ocorreu na quinta-feira passada (13/8), nos municípios de Osasco e Barueri, ambos na região metropolitana de São Paulo. Os autores dos crimes, ao que tudo indica, são policiais que pretendiam vingar a morte de dois colegas vítimas de latrocínio. Pedro e Paulo são, respectivamente, Jonas dos Santos Soares e Eduardo Bernardino César.


É difícil saber o que teria acontecido exatamente se a chacina tivesse ocorrido nos bairros de classe A e B. Arrisco-me a dizer, no entanto, que seria algo bem diferente do silêncio incômodo dos últimos dias. Mas jovens brancos de classe média alta não são alvos de chacinas praticadas por grupos de extermínio.


Os motivos que levam as pessoas a se solidarizar e se chocar com a morte violenta de uns e não de outros são muitos. No entanto, não consigo deixar de lamentar com profunda tristeza e indignação o fato de termos nos tornado uma sociedade tão hipócrita e cruel a ponto de atribuirmos valor ao que não deveria ter preço: a vida humana.


*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"