sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

A mãe ideal (só que não)



Basta uma mulher contar que está grávida para que apareça um exército de palpiteiros. Conselhos e dicas a respeito da gravidez, do parto e dos cuidados com o bebê pipocam de todos os cantos.

O parto deve ser natural, de preferência em casa; a amamentação, exclusiva até pelo menos o sexto mês, em livre demanda (o bebê mama quando desejar). Os conselhos ainda tratam da maneira correta de carregar a criança, como fazê-la dormir a noite toda e alimentá-la sem agrotóxicos e alimentos industrializados.

A maioria está bem-intencionada, acredita que se sua receita funcionou para si, será, portanto, útil a todas as outras mães. E os conselhos vêm de todo o lado: da mãe, das irmãs, das amigas, da vizinha. A mulher, despreparada e ainda sem dominar o universo que acabou de adentrar, ouve tudo com atenção, como se seguisse uma receita em que a perda de um único ingrediente pudesse estragar completamente o resultado final.

Então chega a hora tão aguardada. E aí a mulher se depara com a realidade que cedo ou tarde cai como um meteoro na cabeça de qualquer mãe: nem tudo sai como o esperado.

O parto não foi bem como ela imaginou, a amamentação não corre às mil maravilhas, a criança não para de chorar, nenhuma receita para acabar com a cólica do bebê funciona, e a mãe se vê, muitas vezes, impelida a pedir ajuda, a ir em busca de informações. Porque, com a internet e todos os mil movimentos existentes, receitas não faltam.

A pressão pela perfeição atinge as mulheres em outras fases da vida, mas em nenhuma outra é tão cruel quanto no início da maternidade. É nesse momento em que a mulher está desprotegida, em que se sente responsável por outro ser que a cobrança pode ser mais implacável.

A intenção inicial pode não ter sido essa, mas cada vez que uma regra é adotada como geral, aquelas que não a seguem se sentem, no mínimo, incompetentes. Afinal, que mãe não quer acertar e fazer tudo o que pode pelo bem-estar e saúde do filho?

Acontece que as regras e dogmas podem ser bastantes aprisionadores e opressivos, tornando a mulher insatisfeita e insegura. Desnorteada, ela deixa de ouvir a pessoa mais importante nesse momento: ela mesma.

A verdade é que não existe uma receita a ser seguida. A maternidade é uma busca quase solitária, que envolve a mãe e o bebê. Cada mulher precisa buscar e encontrar seu caminho. Dicas podem ser bem-vindas, desde que dadas com sensibilidade e não com a intenção de ensinar.

Dá para ser boa mãe sem ser perfeita. Não é fácil, mas é possível. Mesmo para quem, como eu, não segue a cartilha da mãe ideal.



*Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

domingo, 11 de janeiro de 2015

A pataquada do vídeo italiano contra a violência doméstica


Na primeira semana deste ano, o vídeo "Slap Her!" ("Bata nela", em tradução livre), feito pelo jornal online italiano fanpage.it, foi visto e compartilhado à exaustão no mundo todo (o vídeo, com áudio em italiano e legendas em inglês, está disponível no YouTube). Nele, meninos de 7 a 11 anos são apresentados a uma menina, Martina.

O narrador, um homem adulto, pergunta o que eles mais gostam na garota. Um diz que é o cabelo, outro, os olhos. Depois, ele solicita que a acariciem, e é prontamente atendido. Por fim, o mesmo homem pede que os meninos batam nela. Os garotos fazem cara de surpresa e, pela primeira vez, não o obedecem e se justificam: “Não se bate em mulher nem com uma flor”, “Sou homem e homem não bate em mulher”.

O vídeo caiu nas graças dos incautos. Afinal, quem não se comove com crianças engraçadinhas dizendo que não se deve bater em mulher, coisa que muito marmanjo ignora?

No entanto, a violência doméstica cresce em vários lugares do mundo, incluindo a Itália, país notadamente machista onde, segundo a ONU, morrem cerca de 130 mulheres todos os anos vítimas de violência.

A intenção do vídeo seria mostrar que o machismo é uma construção cultural, não algo intrínseco ao ser humano e que, portanto, pode ser mudado. Porém, talvez por ingenuidade ou desconhecimento da causa feminista, o vídeo apresenta uma série de problemas, alguns já discutidos em artigos de vários países. Aqui, aponto os que mais me chamaram a atenção:

1) Não ouvimos a voz da menina nem uma vez sequer. Parada em frente aos meninos, ela é apresentada pelo narrador e passa a ilustrar o vídeo como um objeto de cena, em meio a garotos que dizem seu nome, revelam a idade e seus sonhos.

2) O narrador pergunta o que acham da menina, pedem que lhe acariciem e lhe batam, mas nem uma vez ousa indagar o que ela, Martina, realmente quer. Ela consente que a acariciem? Gosta disso? Na verdade, ela parece bastante consternada e sem graça ao ser tocada.

3) Sabemos que a violência contra a mulher não ocorre em frente às câmeras, portanto é de se esperar que os meninos fiquem constrangidos e se recusem a bater em Martina. Fariam a mesma coisa se ela fosse um menino como eles, posso apostar. Ou alguém bate no outro porque lhe mandam, ainda mais sabendo que está sendo filmado? Portanto, o vídeo não prova absolutamente nada.

4) O tempo todo, os protagonistas do vídeo são os meninos. Eles decidem se e como devem tocar nela, como se a carícia sem o consentimento declarado de Martina por si só já não fosse uma violência que nós, mulheres, conhecemos bem.

5) O que podemos notar no vídeo é que os meninos fizeram bem a lição de casa e decoraram todos os clichês, como “homem não bate em mulher, ainda mais bonita” ou “em mulher não se bate nem com uma flor”. Sabemos que os clichês não evitam a violência, caso contrário não veríamos os números de violência doméstica crescerem a cada ano.

6) Mas o melhor fica para o gran finale: o narrador pede que um dos meninos beije Martina, e o garoto pergunta se deve fazê-lo na boca ou no rosto. Vejam bem, ele questiona o narrador, não a menina.

7) Por fim, ao contrário do que possa ter desejado o autor do vídeo, ele passa a mensagem errada e nociva de que mulher, desde criança, se for bonita, agradar e servir aos propósitos dos homens merece algum respeito. Mesmo que não abra a boca.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Encontro


Enquanto ela falava, a alça do vestido de algodão lhe escorregava pelo ombro, revelando mais do que deveria. Ela, contudo, não se importava, sabia que o colo bonito não trazia as marcas que carregava na alma. Sentia o olhar de desejo do rapaz a sua frente, e gostava da sensação de poder que isso lhe causava.

Ele, por sua vez, admirava a força daquela mulher que gesticulava e falava sem parar, intercalando as frases com meio-sorrisos que deixavam entrever os dentes brancos e alinhados.

Nunca desejara tanto uma mulher, nunca estivera diante de uma como aquela. O cabelo escuro caindo delicadamente no rosto, o nariz afilado, o jeito despretensioso como mordia o lábio inferior enquanto pensava na próxima frase, tudo parecia naturalmente estudado. Mas não era sempre assim com as mulheres interessantes?

Ele, no entanto, não ousava avançar, nunca lidara bem com a rejeição e temia o estrago que a recusa dela pudesse lhe causar. Se sufocasse o desejo com afinco, talvez ela nem percebesse que tudo que ele queria era saltar sobre a mesa e tomá-la nos braços.

Tinha esse pensamento em mente quando o garçom chegou com a conta, que ele prontamente pagou, não sem uma tentativa de protesto dela, logo abafada. Então lembrou que estava em um bar, cercado de gente. Mais um pouco e estaria de volta ao quarto e sala vazio, entregue à solidão conhecida, diante da tela branca do computador, experimentando uma sensação tão diversa da que sentia agora.

O que o impedia de convidá-la a sair dali para que ela visse uma de suas fotos que tanto a encantaram semanas antes? Era um bom pretexto, afinal não fora o interesse dela por seu trabalho que os aproximara?

Faltava-lhe coragem, porém. Melhor seria encerrar o assunto e marcar outro encontro em um bar, quem sabe uma bebida, então, o ajudasse. Mas e se ela não aceitasse? Aquela poderia ser sua única oportunidade.

Pronto, estava decidido, não perderia a chance, iria em frente, que ela dissesse não, que recusasse, que nunca mais quisesse vê-lo, pouco lhe importava, a dúvida se dissiparia ali e não o devoraria durante dias.

-- Preciso ir – disse ela com ar descompromissado.

E então ele se levantou, puxou-lhe a cadeira e despediu-se, não sem antes lhe agradecer pela oportunidade.

E partiu. Cinco minutos depois, já do outro lado da rua, xingava o rapaz que passava de moto e lhe molhava o casaco recém-lavado no tintureiro japonês do bairro, que lhe cobrara os olhos da cara.