quarta-feira, 4 de maio de 2016

Intolerância de gênero

Quando frequentei o ensino fundamental e médio, ninguém tratava com profundidade questões como gênero e sexualidade. Até se falava em sexo nas aulas, mas sempre do ponto de vista biológico. Também pouco se discutiam temas relevantes a outras etnias ou minorias, e toda vez que isso ocorria, fazia-se a partir de uma visão etnocêntrica, masculina, heterossexual, cisgênera e branca. Aqueles que pertenciam a outras categorias (mulheres, negros, indígenas, homossexuais, travestis, enfim, o “resto”) eram, quando muito, apenas mencionados, afinal nem sempre é possível esconder as pessoas embaixo do tapete.

Ainda bem que os tempos mudaram, dirão alguns. Passaram-se anos (nem tantos assim) desde que me sentei pela primeira vez à mesa da escola. Hoje, minhas filhas o fazem, o que despertou ainda mais meu interesse pelas discussões sobre os Planos Nacional e Estadual de Educação, que traçam diretrizes para o ensino no país.

Pois bem. Se é verdade que na atualidade as ditas minorias estão representadas em movimentos sociais e políticos e em grupos nas redes sociais, também é fato que há enorme resistência para tratar nas escolas os temas propostos por pessoas que não se enquadram na descrição dos “homens do poder”.

Políticos, religiosos e lobbystas se organizaram para exigir que não se discutam metas de combate à desigualdade de gênero, à discriminação racial e de orientação sexual no Plano Nacional de Educação. E estão se saindo muito bem, como temos visto recentemente. Assim como aconteceu comigo anos atrás, as crianças e adolescentes de hoje continuarão engolindo a versão masculina, heterossexual, branca, cristã e cisgênera da nossa história. Como toda versão única, ela é limitada e parcial, pois não abarca todas as realidades e deixa de fora questões de máxima importância para a sociedade, ainda mais se considerarmos que somos o país que mais mata transexuais no mundo e o quinto colocado em casos de violência contra a mulher.

O que pensam as mulheres cisgênero sobre isso? Não interessa. E as mulheres e homens trans? Tampouco. Homossexualidade, então, não deve ser sequer mencionada. A desculpa dos nobres senhores é que tratar essas questões em sala de aula dá espaço para a temida - atenção agora - ideologia de gênero. Buuuu.

Mas o que seria essa ideologia e por que ela assusta tanto os distintos? Ela é, antes de tudo, uma mentira inventada para impedir a discussão de questões de gênero e igualdade nas escolas. Ao combater a ideia (errada, diga-se) de que gênero é determinado biologicamente e 
negar que identidade de gênero deve sempre “bater” com o órgão sexual com que nascemos, como se fôssemos definidos por um pênis ou uma vagina, estaríamos colocando a família e a ordem social em perigo.

Além de extremamente limitante, essa noção de determinismo biológico está errada. Existem, por exemplo, pessoas que nascem com pênis e se identificam com o gênero feminino. E o que elas são? No caso, mulheres. Qual o problema de se ensinar isso às crianças? Por acaso aprender a realidade lhes oferece perigo? É melhor mentir para manter uma ordem social hipócrita?

Para mim, está bastante claro: o medo de certos religiosos e pessoas que são referência normativa da sociedade, como bem salientou a cientista social Maíra Kubík Mano, no artigo de hoje para o blog “Agora é que são elas”, é perder os privilégios que os brancos, ricos, heterossexuais e cisgêneros têm sobre os demais. Apenas isso.

O único risco que nossas crianças correriam caso passássemos a lhes ensinar que há outras narrativas, outras possibilidades e outras vivências e que é preciso considerá-las e respeitá-las para construirmos uma sociedade mais igualitária é fazê-las pensar e questionar. E isso, meus amigos e amigas, é um perigo para a estrutura dominante.