terça-feira, 26 de abril de 2016

Elas não usam camisinha


As meninas não usam camisinha. Ou melhor, até usam, mas em geral quando os meninos impõe. E eles, sabemos, não curtem muito preservativo.

Diversas pesquisas revelam que as adolescentes relutam em exigir o uso da camisinha nas relações sexuais. E há vários motivos para isso.

A adolescência é um período de incertezas e descobertas. As mudanças físicas, psicológicas e comportamentais pelas quais os jovens passam nessa fase são intensas. Se iniciar a vida sexual é difícil para os meninos, criados para serem machos e viris, imaginem para as meninas, ensinadas a controlar e por vezes negar a própria sexualidade.

Leia também: O desamparo das mulheres com zika


O resultado é que 40% das meninas entre 14 e 25 anos não usam preservativos. Um terço dessas jovens (32%) já engravidou; 12,4% sofreram abortamento espontâneo ou provocado. (Fonte: II Lenad, 2012.)

As mulheres, além do risco de engravidar, são mais suscetíveis, por questões anatômicas, a contrair doenças sexualmente transmissíveis nas relações heterossexuais. E o risco de gerar outra vida é, muitas vezes, assumido apenas pelas meninas, que têm de se virar para conseguir abortar ou criar o filho do rapaz que se nega a usar preservativo.

Não à toa, a infecção pelo HIV vem crescendo entre as adolescentes de 13 a 19 anos. Desde 1998, o número de meninas infectadas pelo vírus supera o de meninos (Fonte: Ministério da Saúde, 2007).



Sabemos que as meninas são criadas de maneira diferente dos meninos. Enquanto estes são estimulados a praticar sexo desde muito novos, elas aprendem que não devem demonstrar desejo. Essa diferença, é claro, também aparece mais tarde, na hora de exigir a camisinha.

Como esperar que a jovem, depois de aprender que é preciso esconder seus desejos sexuais e ser cordata e submissa, de repente passe a se impor e exigir o uso de preservativo? Como querer que ela seja responsável se não lhe damos ferramentas para que exerça a liberdade sexual de que vai dispor no futuro?

As meninas só vão se proteger se sentirem-se seguras e valorizadas. Para isso, precisamos falar de sexo com elas desde cedo, ensinar-lhes que se respeitar não é negar seus desejos nem seguir uma cartilha de comportamentos e sim saber estabelecer relações saudáveis, em que suas vontades sejam acatadas.

É necessário que entendamos, de uma vez por todas, que as meninas também têm desejos e que, de uma forma ou de outra, eles serão expressados. Resta saber em que condições queremos que isso aconteça.

*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

quarta-feira, 20 de abril de 2016

O que sobra para quem não é recatada e 'do lar'?

Bela, recatada e “do lar”. Poucas vezes se definiu em tão poucas palavras aquilo que se espera das mulheres. Quem achava que o estereótipo da mulher que vive para cuidar da família sem chamar a atenção para si havia ficado para trás, deve ter se espantado com a descrição feita pela revista “Veja” da mulher do vice-presidente Michel Temer, Marcela Temer.

Para mim, no entanto, não foi surpresa. Sem entrar no mérito político, a própria presidente Dilma foi alvo de várias reportagens sexistas e piadas preconceituosas justamente por fugir da imagem que Marcela Temer ostenta. Aliás, arrisco dizer que a reportagem desta semana tenha exatamente o intuito de enaltecer uma figura que é quase o oposto da presidente, com objetivos políticos.

Imaginemos que Temer fosse mulher e a revista entrevistasse seu marido, um homem 43 anos mais jovem. Primeiro, a repórter falaria sobre suas roupas, o modo como penteia o cabelo e cuida da pele, a forma como cria o filho do casal e depois terminaria elogiando o fato de que vive à sombra da esposa, quase sempre esperando, pacientemente e sem reclamar, por um minuto de atenção da companheira ocupada. Inconcebível, certo?

Não se trata de condenar Marcela. Ela provavelmente tem muito mais a mostrar, e como qualquer mulher, tem direito de ser quem é e fazer as escolhas que lhe garantam a vida que deseja. O triste é ver que a sociedade ainda enaltece uma imagem que não corresponde à maioria das mulheres.

Isso é feito de formas sutis e outras nem tantas. Todas as vezes em que dizemos a uma menina que ela precisa tomar cuidado com as roupas que escolhe, que ela não deve ter muitos namorados nem fazer sexo com “qualquer um”, que é tarefa dela e só dela cuidar dos filhos e da casa e ainda encontrar tempo e disposição para manter a beleza estamos corroborando a imagem da mulher ‘bela, recatada e do lar’.

O recado que a revista e boa parte da sociedade nos dão é para que reconheçamos nosso lugar e não ousemos sair dele. E esse lugar é, de preferência, recheado de vestidos longos e discretos em tons pastel, cercado pela família, ofuscado pelo marido, onde haja espaço apenas para, em voz baixa e com doçura, concordar e garantir a paz para que o parceiro brilhe. A ele, sim, estão disponíveis todos os espaços da sociedade.

Só há um problema: nem toda mulher aceita ocupar esse lugar. Há quem queira gritar, usar roupa curta e colorida, pintar o cabelo de abóbora, tatuar um dragão no braço, usar piercing na língua, abrir mão de constituir família e ainda assim ser respeitada.


É lamentável que, com tanto lugar disponível e tantas possibilidades, a gente ainda hoje tenha que meter o pé na porta para ocuparmos os espaços que desejamos.

*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

quarta-feira, 6 de abril de 2016

O mito da mulher louca

O filósofo francês Michel Foucault, em “História da Loucura”, chama a atenção para o uso, ao longo da história, do conceito de normalidade como forma de controle social. Aqueles cujos comportamentos e atitudes subvertem a ordem estabelecida são reprimidos e controlados, sob a ameaça de serem chamados de loucos e, em última instância, afastados da sociedade (“eliminação dos a-sociais”, segundo o autor). Portanto, quem determina o que é normal exerce poder sobre os demais.

São inúmeros os casos de mulheres consideradas desequilibradas e muitas vezes internadas em conventos ou sanatórios por engravidarem de quem não deveriam, por se recusarem a casar com quem não desejavam ou ainda por lutarem contra a opressão a que lhes submetiam.

Mesmo sabendo que existem doenças psiquiátricas (não pretendo negá-las), podemos garantir que Maria I de Portugal, Joana de Castela, Camille Claudel, Frances Farmer, Sylvia Plath e tantas outras que não por coincidência assumiram atitudes contrárias ao que se esperava delas sofriam de fato de patologias? Será que necessitavam mesmo de tratamento ou esse foi o modo que a sociedade encontrou de desmerecê-las por sua ousadia?

Na atualidade, o mito da mulher louca ainda serve como uma luva para deslegitimar e desqualificar aquilo que as mulheres dizem e fazem. Não conheço nenhuma mulher que nunca tenha sido chamada de maluca, doida, histérica, descontrolada, desequilibrada ou qualquer coisa do gênero. Quando ela assume posições de poder, ou seja, subverte a ordem implícita de que não deve aventurar-se a abandonar seu lugar subalterno, as alusões à sua loucura são ainda mais evidentes.

É claro que acostumamos a nos chamar de loucos o tempo todo, homens e mulheres. Qualquer comportamento mais agressivo ou fora do comum é logo considerado desequilibrado, sem grandes prejuízos para ninguém. Não é disso que falo. Refiro-me à tentativa de questionar a competência, atitudes ou sentimentos de uma mulher atribuindo-lhe uma pretensa loucura.

Vivemos um momento político difícil. Mesmo assim, é preciso resistir a generalizações perigosas. Dilma não é louca. Janaína Paschoal também não. São mulheres bem sucedidas profissionalmente, passíveis de críticas quanto a seu desempenho, mas que nada têm de malucas. Devem ser responsabilizadas por suas atitudes, mas não agredidas com frases preconceituosas, que só fazem reforçar estereótipos extremamente nocivos, contra os quais lutamos.

Deixemos em paz os loucos, sejam eles os que sofrem de patologias ou os que apenas ousam transgredir as leis da sociedade.


*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"